
Mais do que buscar
permanentemente felicidade máxima, um arrebatamento mágico, deveríamos nos
preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia.
É o que defende o doutor em
psicologia clínica e psicanalista Contardo Calligaris. Uma rápida olhada em sua
biografia mostra que ele não só prega como pratica. Italiano de Milão, depois
de mais de duas décadas em conexão direta com o Brasil, já morou também na
Inglaterra, Suíça, França e nos Estados Unidos e fez muitas viagens.
Aos 65 anos, atingiu a
marca de oito casamentos – desde 2011, está com a atriz Mônica Torres – e teve
um filho francês. Além de atender no seu consultório, nos Jardins, em São
Paulo, já escreveu mais de dez livros, incluindo dois romances.
Criou até uma série para
TV, Psi, no canal a cabo HBO. Diz que, semanalmente, abre mão de
“parecer inteligente aos olhos dos pares” e publica toda quinta-feira uma
coluna no jornal Folha de S.Paulo. Mais de 100 delas estão no livro Todos
os Reis Estão Nus (Três Estrelas). Filmes, fatos, casos de amigos,
tudo vira pretexto para traduzir um pouco das teorias da psicanálise, filosofar
e provocar reflexão. “Não sou de dourar a pílula”, avisa. Não estranhe,
portanto, se sentir um impulso diferente ao terminar de ler esta entrevista.
O que é felicidade hoje?
Não gosto muito da palavra
felicidade, para dizer a verdade. Acho que é, inclusive, uma ilusão
mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do bem-estar. A
sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte
de bem-estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco
ridículo.
Um exemplo é a fala do
churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao escritório e o
taxista diz: “Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num churrasco
tomando cerveja”. Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e não haveria
prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.
Mesmo que não vissem
problema, pode ser que detestassem as pessoas lá e não se divertissem. Em
geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo, estamos sempre
lamentando que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada a prazeres
imediatos, quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista. Por
isso, nos queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito
discretos.
Mas continuamos acreditando
que ser feliz é ter esses prazeres que não nos permitimos. E agora?
Ligamos felicidade à
satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio
funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos
satisfazer plenamente.
O fato de que você pode
desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma joia ou uma
viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela
mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará
conta de que está na hora de desejar outra coisa. Esse mecanismo sustenta ao
mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que
não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz.. Quero é ter
uma vida interessante.
Mas isso inclui os pequenos
prazeres?
Inclui pequenos prazeres,
mas também grandes dores. Ter uma vida interessante significa viver plenamente.
Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica sem alguma coisa que é muito
importante para você. É preciso sentir plenamente as dores: das perdas, do
luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse ideal de felicidade que
tenta nos poupar de tudo o que é ruim.
O que adianta garantir uma
vida longa se não for para vivê-la de verdade? É isso que temos de nos
perguntar?
Quem descreveu isso bem foi
(o escritor italiano) Dino Buzatti, no romance O Deserto dos Tártaros. Conta a
história de um militar que passa a vida inteira em um posto avançado diante do
deserto na expectativa de defender o país contra a invasão dos tártaros, que
nunca chegam. Mas tem um lado simpático na ideologia do preparo. É que está
subentendida a ideia de que um dia a pessoa viverá uma grande aventura. Mas o
que acontece, em geral, é que a preparação é a única coisa a que a gente se
autoriza.
Então, pelo menos há um
desejo de viver uma aventura?
Mas os sonhos estão
pequenos. A noção de felicidade hoje é um emprego seguro, um futuro tranquilo,
saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos anos de vida. Acho estranho
quando vejo alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha profissional, leva em conta
o mercado de trabalho, as oportunidades, o dinheiro… Isso nem passaria pela
cabeça de um jovem dos anos 1960.
A julgar pela quantidade de
fotos colocadas nas redes sociais de pessoas sorridentes, elas têm aproveitado
a vida e se sentem felizes. Ou, como você aborda em uma crônica, hoje mais
importante do que ser é parecer feliz?
O perfil é a sua
apresentação para o mundo, o que implica um certo trabalho de falsificação da
sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá status. Mas
esse fenômeno é anterior ao Facebook. Se você olhar as fotografias de família
do final do século 19, início do 20, todo mundo colocava a melhor roupa e
posava seriíssimo. Ninguém estava lá para mostrar que era feliz. Ao contrário,
era um momento solene. É a partir da câmera fotográfica portátil que aparecem
as fotos das férias felizes, com todo mundo sempre sorridente.
E a gente olha para elas e
pensa: “Eu era feliz e não sabia”.
Não gosto dessa frase
porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente nunca deveria lamentar
nada, em particular as próprias decisões. Acredito que, no fundo, a gente quase
sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas circunstâncias. Então,
não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que existe isso.
As escolhas ao longo da
vida geram insegurança e medo. Em relação a isso, você diz que há dois tipos de
pessoa: os “maximizadores”, que querem ter certeza antes de que aquela é a
opção certa, e a turma do “suficientemente bom”. O segundo grupo sofre menos?
Tem uma coisa interessante
no “maximizador”: é como se ele acreditasse que existe o objeto mais adequado
de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro que não existe.
A busca da perfeição não
gera frustração, pois sempre haverá algo que a gente perdeu?
Freud dizia que o único
objeto verdadeiramente insubstituível para a gente é o perdido. E não é que foi
perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que nunca tivemos. Então, faz
sentido que nossa relação com o desejo seja esta: imaginamos existir algo que
nunca tivemos, mas que teria nos satisfeito totalmente. Só não sabemos o que é.
Como nos livrar desse
sentimento?
Temos de tornar cada uma de
nossas escolhas interessante. Isso só é possível quando temos simpatia pela
vida e pelos outros – o que parece básico, mas não é no mundo de hoje. Não por
acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de interesse
pelo mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior.
Complica ainda mais o fato
de, como você já abordou, enfrentarmos um dilema eterno: desejamos a
estabilidade e também a aventura. Então, entramos em uma relação ou um emprego,
mas sofremos porque nos sentimos presos e achamos que estamos deixando de viver
grandes aventuras. Isso tem solução?
Não sei se tem solução. A
gente vive mesmo eternamente nesse conflito. Agora, como cada um o administra é
outra história. Pode-se optar por uma espécie de inércia constante, que será
sempre acompanhada da sensação de que você está realmente desperdiçando seu
tempo e sua vida, porque toda a aventura está acontecendo lá fora e, a cada
instante, você está perdendo os cavalos encilhados que passam e não passarão
nunca mais. Viver dessa maneira não é uma das opções. Mas você pode também, em
vez disso, permitir se perder.
Permitir se perder no
sentido de transformar a vida em uma eterna aventura?
Mas também nesse caso você
terá coisas a lamentar. Eu, pessoalmente, fui mais por esse caminho. Mas o
preço foi muito alto. Por exemplo, eu não estive presente na morte de nenhum
dos meus entes próximos, porque morava em outro país e sempre chegava atrasado,
no avião do dia seguinte. Hoje, por sorte, meu filho – que é grande, tem 30
anos – vive perto de mim. Por acaso, ele decidiu vir para o Brasil. Mas não o
vi crescer realmente.
Para ser feliz, enfim, o
segredo é não buscar a felicidade?
Isso eu acho uma excelente
ideia. A felicidade, em si, é realmente uma preocupação desnecessária. Se meu
filho dissesse “quero ser feliz”, eu me preocuparia seriamente.
Preferia que dissesse o
quê?
Só gostaria que ele me
dissesse: “Estou a fim de…” A partir disso, qualquer coisa é válida. O que
angustia é ver falta de desejo nas pessoas, em particular nos jovens. Agora, se
ele está a fim de algo, mesmo que isso pareça muito distante do campo do
possível dentro da vida que leva, eu acho ótimo.
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