Me chamem de velha.
Por ELIANE BRUM
A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem.
Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra
“idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível,
porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser
chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.
Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas –
e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou
há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias
plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio
esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia.
Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting
completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho”
– a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará
para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma
vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice
também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se
isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo.
Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor id
ade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser,
em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”,
vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o
primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado
a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos,
também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura,
duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como
uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás,
em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte
. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha
entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”.
E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum
vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me
garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem,
embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para
dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria.
Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.
Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe.
Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem
que aprendamos nada que valha a pena.
A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para
que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso
morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa
cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize
a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é
apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja
melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor
e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida.
Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a
existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não
consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida.
A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.
A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto?
Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice.
A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por
bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma
fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.
Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo.
Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice.
Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos,
porque eles soam bem intencionados.
São os bonitinhos mas ordinários da língua.
O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a
nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e
mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las
também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes
na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados –
idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente
débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de
uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada.
Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.
Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e
até um Fernando Henrique Cardoso como idosos?
Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice
pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a
eles numa sociedade em que, como disse alguém,
“nasce-se adolescente e morre-se adolescente”,
mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam
fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam
com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda
para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas.
Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de
desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém
leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o
pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima
de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”,
submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar,
nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40,
já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.
O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso.
Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem
olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.
Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma
coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo.
Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito
menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente
de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos
. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no
chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando.
Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os
meus limites e tenho me batido para aceitá-los.
Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas.
Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos
do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo
os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam
porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que
tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque
ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das
quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar
aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências.
Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos
sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente
para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas
dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e
queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem
a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas,
à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer
e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará.
Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão
jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins.
Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar
sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha.
Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força.
Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu
corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez
mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com
a graça de um espanto.
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