Vivemos
semi despertos e nosso inconsciente toma muitas das nossas decisões. Como sair
desse estado?
O Experimento Bargh
O modo como você anda
o quão persistente você é, qual seu nível de egoísmo e até mesmo o que você
comprará no supermercado: sinto muito, mas quem decide essas coisas banais e
outras tantas mais importantes não é você.
Em 1996, o
psicólogo John Bargh realizou
um experimento simples, mas de implicações perturbadoras. Ele dividiu
voluntários em dois grupos e pediu que formassem frases com palavras dadas por
sua equipe. Mas um dos grupos tinha uma peculiaridade: sem perceberem, algumas
dessas palavras eram relacionadas à velhice (esquecido, careca, ruga, etc). Em
seguida, Bargh pedia que todos os voluntários caminhassem até outra sala, mais
distante, informando que lá haveria mais testes, e cronometrava secretamente o
tempo que levavam no percurso.
Por incrível que
pareça, os voluntários do grupo com palavras associadas à velhice caminhavam
mais lentamente que os do outro grupo, como se fossem idosos. Posteriormente,
todos os voluntários disseram não ter percebido as palavras relacionadas à
velhice e tampouco notadas algo de pouco natural no seu próprio jeito de
caminhar.
O teste foi
repetido várias vezes, com rigor científico, e o resultado foi sempre o mesmo.
Até então, a ideia de que
mensagens subliminares (no sentido de informações apenas percebidas pelo
inconsciente de alguém) fossem capazes de realmente orientar o comportamento
humano era uma espécie de “lenda urbana” da psicologia. Mas, a partir do
experimento de Bargh, novas experiências foram desenvolvidas para apurar a
extensão desse efeito de mensagens associativas no comportamento humano mais
básico.
Em 2006, uma equipe
de psicólogos publicou os resultados de um experimento chamado The
Psychological Consequences of Money ("As Consequências
Psicológicas do Dinheiro"). Essencialmente, se tratava de um experimento
semelhante ao de John Barg, mas com palavras e símbolos relacionados ao
dinheiro, que os participantes não percebiam, mas eram repassadas ao seu
inconsciente.
Nesse caso, os
pesquisadores constataram que os membros do grupo que receberam anteriormente
mensagens subliminares associadas a dinheiro persistiam o dobro do tempo na
tentativa de resolver um desafio lógico-matemático de difícil solução. Por
outro lado, esses mesmos participantes se mostravam muito mais egoísta quando
se tratava de ajudar os colegas, ainda que a ajuda não os prejudicasse.
Ou seja, quando as
pessoas estão rotineiramente submetidas a um contexto social em que o dinheiro
é um assunto onipresente, elas se tornam mais determinadas, mas ao mesmo tempo
mais individualistas.
Também em 2006, outro
experimento demonstrou que um grupo de pessoas orientado a
pensar em atos vergonhosos de seu passado antes de participar de um jogo de
palavras tendia a escolher, no jogo, palavras associadas com limpeza. Esse
teste progrediu para outro em que parte dos voluntários deveria imaginar
estarem praticando um homicídio - tal grupo, em uma posterior simulação de
compra no supermercado, adquiriu mais produtos de limpeza (sabão, detergente,
etc.) que os demais participantes.
A um resultado
semelhante chegou o mundialmente aclamado neurologista António Damásio.
Em 1996, ele desenvolveu uma série de testes que comprovaram que o ser humano
não toma decisões racionais mesmo que o contexto exija racionalidade. Segundo a
pesquisa de Damásio, tomamos decisões inconscientemente motivadas por emoções
e, disfarçando esse fato para nós mesmos, criamos justificativas aparentemente
racionais para essas escolhas. Quando questionados, os indivíduos sinceramente
afirmavam que sua escolha foi pautada por considerações racionais, mas Damásio
desenvolveu uma espécie de jogo capaz de revelar quando, na verdade, as
decisões eram tomadas por emoções.
Dezenas de outros
experimentos similares estão sendo documentados nos últimos tempos, todos
realizados e repetidos o número suficiente de vezes para serem validados
segundo criteriosos parâmetros científicos. E em todos eles, os participantes
afirmaram ao final não terem percebido as mensagens subliminares que
influenciaram seu comportamento.
Todas essas
pesquisas demonstram, de forma sólida e objetiva, que o pilar central das
teorias psicológicas tradicionais realmente existe. Não se trata de uma
pressuposição abstrata, sem fundamento: o inconsciente, aqui entendido como uma
parte de nossa psique que escapa ao controle da nossa consciência, tem o poder
de, frequentemente, dar a última palavra em relação ao nosso comportamento.
E a conclusão final
desses experimentos bem resumida por Daniel Kahneman,
psicólogo que ganhou o Nobel de economia por desenvolver uma teoria que estuda
a tomada de decisão humana inclusive sob o enfoque econômico: gostamos de
pensar que somos senhores de nossas atitudes e decisões, mas é um estranho quem
conduz nossas vidas.
Após falar de
algumas dessas pesquisas em seu aclamado livro Rápido e Devagar,
Kahneman arremata: "você acabou de ser apresentado a esse estranho que
existe em você mesmo, que talvez esteja no controle sobre grande parte do que
você faz, embora você raramente vislumbre isso".
E esse estranho é
manipulável, facilmente influenciável. Um político habilidoso, uma agência
publicitária ou mesmo um líder religioso que souber puxar as cordas certas será
capaz de conduzir o seu destino como o de uma marionete, por mais que você não
admita isso, por mais que você se julgue especial e diferente de seus
contemporâneos.
E tudo isso porque
você está dormindo, neste exato momento.
Acorde.
Gurdjieff e o sonho acordado
O armênio George Ivanovich Gurdieff faz parte
daquele grupo de loucos geniais do século XX, que misturavam insights
reveladores com pirações às vezes perigosas, grupo ao qual pertenciam figuras
como Colin Wilson, William Reich, Aleister Crowley, Jodoroswki e tantos
outros doidos de variado grau de periculosidade social. Sabendo separar o joio
do trigo, as teorias malucas das ideias proveitosas podem aprender um bocado
com Gurdjieff.
Para ele, estamos
sempre adormecidos, seja durante o sono noturno, seja com os olhos abertos ao
longo do dia, ocasião em que nos iludimos de que estamos totalmente despertos.
Para entendermos o
que ele quer dizer, precisamos compreender alguns aspectos elementares dos
sonhos. Quando dormimos à noite, ficamos apenas parcialmente e não
completamente isolados do mundo externo, sem perceber o que ocorre lá fora.
Afinal, fechamos nossos olhos para dormir, mas não nossos ouvidos e os demais
sentidos de nosso corpo.
Então, às vezes,
percepções do mundo real vazam para dentro de nossos sonhos, e nós incorporamos
esses estímulos ao que sonhamos no momento. Todos nós já passamos por esse tipo
de experiência. Às vezes, sentimos sede e sonhamos que estamos bebendo água.
Dentro de nosso sonho um carro buzina, um telefone toca ou alguém nos chama
pelo nome e logo em seguida despertou para descobrir que no mundo real um carro
estava mesmo buzinando, nosso celular realmente tocava ou alguém de fato
tentava nos despertar.
Isso ainda acontece
quando estamos supostamente acordados, pois em certo sentido ainda continuamos
a sonhar, e quem sonha de olhos abertos é alguém chamado “Ego”.
E o ego sonha
porque tende a organizar todas as experiências do mundo em torno de si, como se
tudo o que ocorresse tivesse ele, direta ou indiretamente, como protagonista,
como personagem central para o qual todas as coisas, todos os eventos,
convergem.
Assim, a única
diferença entre estar dormindo e estar acordado seria apenas do grau de
profundidade do ato de sonhar realizado pelo Ego. Isso porque os sonhos são
formados por fragmentos de estímulos do mundo lá fora e por elementos que estão
em nosso inconsciente. Há, por assim dizer, uma mistura de realidade e de
subjetividade.
Durante o dia, a
quantidade de percepções do mundo lá fora que vazam para esse nosso
"sonho" é muito maior, e o Ego se encarrega de ajustar todos esses
estímulos exteriores para formar uma narrativa coerente que confundimos com a
realidade, mas que não passa de algo imaginado - pois, no centro da narrativa,
nós somos os protagonistas e a verdade é que o mundo existe, as pessoas vivem e
as coisas acontecem independentemente de nossa existência.
Vamos lembrar-nos
do exemplo da buzina e do celular. Quando estamos acordados, percebemos a
realidade ao nosso redor, e estamos conscientes quando um carro buzina ou toca
nosso celular. Podemos, assim, interagir com o mundo lá fora.
Porém, para
Gurdjieff, não percebemos os estímulos externos tais como são, mas os
selecionamos e os interpretamos conforme nossa perspectiva de Ego que está em
parte acordado e em parte sonhando.
Da mesma forma
como, enquanto dormimos à noite, a matéria de nosso sonhar é o conjunto de
elementos pertencentes ao inconsciente somado a algumas percepções da
realidade, enquanto estamos acordados durante o dia essas percepções, mais
numerosas, são misturados pelo Ego condicionamentos da infância, traumas,
preconceitos, desejos frustrados, temores, expectativas e pressuposições sobre
como gostaríamos que as coisas fossem.
Para explicar esse
processo, há um conceito muito útil formulado pela psicologia. Trata-se do fenômeno da projeção. Assim como um antigo projetor de cinema projetam
na tela branca cenas de um filme, da mesma forma nosso Ego projeta nos
acontecimentos suposições e circunstâncias que não são reais, mas que
correspondem, de forma por vezes simbólica, ao que está dentro de nós e que
somos incapazes de reconhecer conscientemente.
Estamos
parcialmente dormindo nesse exato momento justamente porque nosso estado de
semi despertar é repleto dessas projeções.
Esse é o motivo
pelo qual, muitas vezes, um pequeno incidente no trânsito acaba em violência
desproporcional. Também é a razão pela qual uma rivalidade entre torcidas de
futebol pode ser a dar lugar a um homicídio, ou um pequeno desentendimento
entre familiares ou amigos pode resultar num grande desentendimento, com todos
magoados de forma incompreensível.
Matar por um time,
agredir por causa de um pedaço de metal motorizado ou magoar-se por um
incidente minúsculo: fatos insignificantes que resultam em grandes tragédias. É
que, envolvendo os fugazes e pouco relevantes eventos da vida real, há camadas
e camadas de projeções resultantes de nosso estado semi desperto.
Nesses casos e em
muitos outros, quem discute, agride ou se magoa não está realmente enxergando o
outro ser humano na sua frente, mas uma mistura da outra pessoa com uma
projeção de algo que existe apenas na sua cabeça. Porém, como sonhamos
acordados, julgamos ter existência concreta coisas que estão apenas em nossa
mente. É assim que nosso Ego mantém uma narrativa coerente, mas falseada, sobre
sua importância no mundo.
Mas se a diferença
entre nosso sonho noturno e nosso sonho diurno está apenas no grau em que os
estímulos internos vazam para nosso sono, há algum modo de realmente despertar?
E como despertar?
Para Gurdjieff
haveria, ao lado do adormecer noturno e do "sonambulismo" diurno, um
terceiro estágio de consciência. Esse seria o estado de pleno despertar.
É dessa forma que o
bigodudo armênio definia o conceito oriental de "iluminação" e seus
equivalentes ocidentais, como a "beatitude": não haveria nada de
místico nesses estados, o iluminado não seria alguém que atingiu um nível de
espiritualidade superior. Quem se ilumina simplesmente acordou no sentido de
não misturar e confundir as coisas do mundo real com elementos do seu mundo
subjetivo - a vida lá fora não é mais uma tela branca na qual seu ego projeta,
sem perceber, conteúdos que estão aqui dentro. Ele reconhece as coisas tal como
são.
Essa curiosamente,
era a visão que outra maluca beleza, Wilhelm Reich,
tinha sobre a personalidade de Jesus Cristo. Para Reich, não se tratava do
"filho de Deus", e tampouco de um alienígena ou ser de alguma forma
espiritualmente distinto dos outros humanos. Ele teria sido apenas um homem que
despertou mais do que seus contemporâneos, e seu assassinato não começou no
momento da crucificação, mas quando seus discípulos passaram a tratá-lo como
uma espécie de divindade, deturpando suas palavras.
Nesse caso
teríamos, na história de Cristo, um ensinamento importante a tirar. Quando
chegamos a esse terceiro estágio, a essa experiência de um maior despertar,
aqueles que ainda estão dormindo e sonhando projeta em nós o conteúdo de seu
sonho: não nos entendem e tampouco nossas palavras, então nos tratam como se
fôssemos seres espiritualmente superiores. Isso é uma estratégia defensiva com
a qual o Ego impede que possamos ir mais além e superá-lo. Afinal, se aquele
sujeito que fala coisas maravilhosas não é como nós, mas sim uma criatura de
natureza divina está dispensada do compromisso de chegar ao estágio em que ele
se encontra.
Mas no momento em que
despertamos já não nos enganamos mais e somos capazes, ao menos em parte, de
reconhecer o mundo e as coisas tal como de fato são. Percebemos a realidade
dentro da modesta capacidade de nossa consciência, mas essa capacidade está
disponível em sua potencialidade mais plena pois não está contaminada por
conteúdos do inconsciente. Estamos acordados e possuímos a noção mais precisa
possível dos estímulos externos, de modo a perceber a complexidade e
ambiguidade de cada situação ou ser com que entramos em contato, e a
dificuldade peculiar de adaptá-los nas categorias mentais que nossa mente
formula.
Mas ainda não
chegamos ao que importa: há algum modo de não sonharmos mais?
Nesse ponto, a
primeira atitude mentalmente saudável é abandonar qualquer tipo de obsessão
pela ideia de "despertar". Gurdieff era, em grande parte, obcecado
com a noção de que podíamos atingir uma consciência mais plena, e exigia
incondicional adesão de seus discípulos que deveriam fazer exercícios diários
de atenção para não se deixar “adormecer” no cotidiano.
Porém, um dos
segredos da vida que nos poupa de sofrimento desnecessário é não exigir de si
um desempenho de perfeição a 100%. Admitir que a natureza humana é falha e que
graus menores de sucesso, atingíveis sem o sacrifício de nossas relações
humanas, são possíveis, é a atitude mais recomendável.
É por isso que se
começarmos com uma compreensão de que qualquer pequeno despertar diário, por
menor que seja, já é uma vitória, estamos no caminho certo. Seremos capazes de
nos desculpar e compreender quando nos apanharmos dormindo diante de uma
situação, projetando no mundo real o que é “sonho" de nossa mente, e
seguiremos um trajeto suave, sem atritos e obsessões, para um caminho de melhor
qualidade de vida.
E qualidade de vida
é uma palavra importante, pois deixa claro que, nesse tópico, o fundamental é
ser prático e não filosófico. Não queremos chegar a um estágio de superioridade
metafísica - queremos é viver bem e reduzir o sofrimento dos seres ao nosso
redor. Isso porque ainda não respondemos claramente como chegar a um maior
despertar.
Ocorre que a
segunda atitude mental saudável é não se deixar prender a qualquer filosofia ou
doutrina específica que nos sirva como forma de despertar. Pois ao lado do
risco da "obsessão", também há o risco de "fanatização" com
uma das variadas doutrinas e técnicas que podem nos fornecer para deixarmos de
dormir acordados.
Porque há, sim,
vários métodos capazes de servir como via para um maior despertar. O grande
truque é considerarmos todos esses métodos e doutrinas como instrumentos, úteis
dentro de determinados limites e contextos, e não como verdades absolutas que
trazem a panaceia para nossa situação.
E se adotarmos essa
postura, praticamente quase todas as atividades de desenvolvimento humano, da
Yoga à prática de nosso esporte favorito, tornam-se ferramentas para despertá-lo.
Dito isso, uma das
práticas mais antigas e eficientes para começar a trilhar o caminho de um maior
despertar é a meditação. Por assim dizer, a ela é uma "tecnologia de
despertar" desenvolvida no Oriente. Há, na verdade, vários tipos de
meditação, e a experiência de cada uma delas é tão particular que é como se fosse uma roupa que se ajusta à cada pessoa
conforme suas particularidades. Mas todas induzem, de uma forma ou de outra,
nossa mente a ficar mais atenta aos seus processos internos e à relação com o
mundo externo.
E modernamente,
arrisco dizer que o Ocidente desenvolveu modernamente sua própria tecnologia de
despertar, embora sobre ela ainda recaia muita incompreensão e acusações
injustas, em grande parte vindas de pessoas, que jamais tomaram o cuidado de
realmente estudá-la com a profundidade e atenção que ela existe, e que confundem o mapa com o terreno que ele tenta representar.
Trata-se da psicanálise, que se desenvolveu muito após o passo inicial dado por
Freud (e as principais críticas de leigos voltam-se muito a esse fundador,
ignorando o que foi revisto e reformulado ao longo de um século) e que nos
auxilia a compreender até onde a nossa percepção do mundo circundante é afetada
e mesmo falseada por elementos internos.
Existe, assim, um
ponto de encontro entre a prática oriental da meditação e o procedimento
ocidental da psicanálise. Seja pelo treino da desindentificação entre a
consciência e os pensamentos (meditação), seja pelo trabalho de reconhecimento das
representações emocionais/simbólicas (psicanálise), ambas as experiências
partem de pontos díspares (a meditação, do treino da consciência; a
psicanálise, do labor com o inconsciente) para atingir um objetivo comum: a
habilidade de distinguir o que há de real daquilo que há de onírico.
Um mundo com
pessoas mais despertas é um mundo de pessoas mais amorosas em suas relações e
mais responsáveis em seus atos. Quem acordou um pouco mais do sonambulismo
diário é capaz de ter a abertura necessária para construir uma sociedade
realmente evoluída, em que o centro de nossas decisões não é o ego, mas o bem
estar coletivo.
Fazemos, por fim,
amizade com o desconhecido que há em nós e que comanda nossas vidas. Trazemos-lo
à luz, reconhecemos os seus objetivos confusos, medos ocultos e desejos
inconfessos. E ele se torna menos manipulável, menos cego em seus passos. Na
verdade, ocorre a fusão entre nós e uma parte de nosso ser que ignoramos. Por
fim, abrimos nossos olhos um pouco mais, pois eles estão fechados neste exato
momento, e sonhamos sem perceber.
Portanto,
despertemos.
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